Comportamento, ciência, tecnologia, direito, política, religião, cinema e televisão, alguma controvérsia, algum bom senso, e um pouquinho de besteira, para dar um gostinho...

3 de mai. de 2016

Técnico de Informática bonzinho



Fui acusado de ser um técnico malvado. Recusando os pedidos dos usuários de primeira, sendo crítico ou mal humorado. Reconheço, o sou. Mas não sou dissimulado, ou hipócrita, e, portanto, no mais recente episódio, como em qualquer outro que venha a luz, deixei bem claro os motivos. Eles existem, em abundância.

A sociedade vive a revolução tecnológica. Somos cada dia mais dependentes da tecnologia em todos os sentidos. Eu vivi a era de ouro da tecnologia, o boom das dotcoms, sua queda vertiginosa, o investimento de capital fluindo para a Internet como um rio para o mar. Eu vivi a mudança do real para o virtual, do telefone para o mensageiro instantâneo, e me adaptei surpreendentemente bem. Eu me sinto bem com a tecnologia, a entendo, e embora tenha atuado por anos fora do círculo tecnológico acadêmico, e tendo apenas recentemente ingressado novamente nessa aventura, eu sempre me mantive ativo, atualizado e ligado as novas tecnologias.

Em contrapartida, a população em geral cada vez entende menos de tecnologia. Não entendem como ela funciona, é criada, as evoluções e revoluções constantes da ciência que nos proporcionam as comodidades da era digital. Em verdade, há tantos que criticam essa nova fase mundial, saudosistas pelo contato humano abandonado. Críticos das crianças que tem acesso a mais informações na ponta de seus dedos que todas as bibliotecas públicas municipais combinadas - dos tempos considerados por eles áureos e felizes. Mesmo quem é empolgado pelas novas tecnologias não faz um hábito de entender como elas funcionam minimamente. É comparável a ter um carro, mas não saber a função da bateria, ou do tanque de combustível. Os saudosistas se revoltam contra essa necessidade de novos conhecimentos para manter-se ativo, e os empolgados entendem o mínimo necessário para com desenvoltura utilizarem as ferramentas tecnológicas em sua vida ou seus respectivos campos profissionais.

E no meio, os técnicos. Não somos os cientistas que criam, nem os engenheiros que projetam (na maioria) no mais baixo nível. Somos a interface entre a maioria absoluta da população (que apenas usa a tecnologia) e um mercado agressivo, com jargão próprio, evolução constante, obsolescência programada, artimanhas e gambiarras. Entendemos a tecnologia como poucos, não somos mais "o menino da informática" ou "o cara da TI". Não somos formatadores pirateando software por 50 reais. Não somos os recarregadores de cartuchos de impressora nem os configuradores de WiFi. Somos profissionais extremamente qualificados, em constante corrida contra o vertiginoso avanço da tecnologia que nos obriga foco, estudo e atualização constante. E também somos o suporte técnico. E somos os amigos, colegas e familiares.

Quando alguém me pede algo relacionado à tecnologia, as sinapses disparam e um juízo de valor é imediatamente compilado levando em consideração as variáveis disponíveis. É assim que pensamos, pois é assim que programamos computadores para pensar. A resposta, até que mais informação seja adquirida, é essa. Não nos censure por perguntar, precisamos de mais dados. Não pense que estamos de má vontade, somos técnicos, não milagreiros. Existem limites para a tecnologia, e existem limites para quem a utiliza. Algumas perguntas têm resposta afirmativa para nós, mas precisamos levar em conta a experiência e desenvoltura tecnológica do interlocutor para responder. Sim, tem como fazer, mas exige uma curva de aprendizado, um software especializado caro, um conhecimento prévio complexo que você não possui. Então, para você, agora, nesse contexto, a resposta é não. Precisamos nos proteger da cobrança dos que não entendem e censuram. Precisamos proteger o usuário dele mesmo, evitando que a organização que nos contrata seja prejudicada. É a dura realidade. Precisamos evitar que erros sejam novamente cometidos, ainda mais quando eles são óbvios, informados ou decorrentes de uma ação que deveria ser sumariamente evitada.

A informática é uma ciência exata, governada pela Física e a Matemática. Os computadores, fora algumas limitações, são em geral exatos, fazem cálculos e exibem resultados. Não deveriam dar problema, deveriam ser previsíveis. Então, o que nos fez chegar a "era do suporte"? Qual o motivo de existirem tantos bugs, problemas, comportamentos imprevisíveis e dificuldades? Existem dois principais: o primeiro é o hardware, o segundo é o software. O hardware, devido à microcircuitos integrados e suas particularidades, dificilmente poderá ser consertado no local. Sua falha também acarreta quase que sempre sua substituição, se ele for o armazenamento de dados, não há muito que fazer. O hardware é tranquilo, difícil é explicar quando ocorre perda de dados.

Agora, o software. Entendam, popularizar a informática levou a um processo de dumbing down da ciência e tecnologia, a fim de torná-la mais acessível. Para tornar qualquer pessoa capaz de utilizar seu software, a interface tem que ser melhorada, simplificada. O processo de programação desse software muda, pois exigências como qualidade, previsibilidade e tolerância (presentes ainda fortemente em outros setores, como indústria e forças armadas) são deixadas para trás em favor da velocidade de desenvolvimento, facilidade de utilização e menor curva de aprendizado. Terminamos com computadores que precisam ser reiniciados ou "formatados" (como odeio essa palavra), smartphones que travam, apps que se perdem e sites da web que se confundem em suas próprias informações. Tudo isso considerado pelo status quo como um preço baixo a se pagar pela facilidade, acessibilidade, velocidade de desenvolvimento e integração. E esse tipo de software treinou a geração "next, next, finish", que abomina segundos perdidos lendo a mensagem de erro, que repete a mesma ação esperando um comportamento diferente, que tenta "reiniciar" antes de qualquer coisa (e pior, funciona) e que não tem nem ideia do mais básico conceito, fundamental para utilizar aquela ferramenta, e se justifica com o lamentável: não sou dessa área.
E no meio ficamos nós. O suporte. O "menino da informática".

Tenho notícias. Você é "dessa área". Se eu tenho uma chave teste para rede elétrica, eu não sou um eletricista, mas tenho que saber como ela funciona, sob pena de levar um choque. Se eu não sei para que serve o radiador do veículo, a chance de ter problemas de arrefecimento aumenta exponencialmente. São conhecimentos básicos sobre assuntos complexos que nos permitem trocar lâmpadas, usar uma furadeira, sintonizar um rádio ou TV. Essas coisas são parte da nossa vida e entendemos como elas funcionam. Qual o motivo de não ser assim com computadores e smartphones? Eles são parte de nossa vida cotidiana, mas ninguém entende nada sobre eles. De verdade. O suporte técnico deveria lidar com o comportamento inesperado do software e hardware, não com o comportamento inesperado do usuário. Por vezes tenho que ser psicólogo, consultor sobre postura e oftalmologia. Eu dei aula de informática em classes do maternal (sim, 4 anos de idade) até a quarta série (10 anos). Agora tenho que explicar para adultos coisas que seus rebentos aos 4 anos já sabem. São dois tipos de pessoas que acham que não precisam saber nada sobre o assunto e se justificam, pois: não nasceram nessa época ou não são desse campo do conhecimento. Carl Saga já dizia:

“Vivemos numa sociedade intensamente dependente da ciência e da tecnologia, em que quase ninguém sabe algo sobre ciência e tecnologia.”

Então se sou "malvado", é para:

  1. Obrigar você a percorrer a curva de aprendizado sobre a tecnologia, para não ser tão dependente de mim.
  2. Impedir que você cometa os mesmos erros, afetando a sua produtividade, e a minha.
  3. Mostrar a informação óbvia, perdida em meio aos cliques e ENTERs automáticos, e que mostrava não apenas o problema, mas a solução.
  4. Impedir que a organização que me paga sofra com problemas na relação do usuário com a máquina.
  5. Mostrar que uma ação indevida foi tomada, mesmo que você jure que não o fez, para evitar que o faça novamente.
  6. Retirar a "mística" da informática, que parece levar alguns a crer que tudo é possível, de graça, e em tempo hábil, relembrando que é uma ciência.
  7. Impedir decisões que vão causar mais trabalho e dor de cabeça, por não terem base técnica, não importa quão boa a ideia pareça.
  8. Lembrar que sou um profissional, que estudou e estuda muito para manter-se atualizado, vive disso, e portanto, não está sempre a disposição.
  9. Mostrar a solução óbvia, mais simples e disponível, para um problema que antes não existia, ou que era solucionado com uma gambiarra.
  10. Poupar-me de adentrar outra área, geralmente das ciências humanas, como psicologia, para prevenir ou mitigar problemas com relação ao uso do computador.

Espero que tenha sido claro. Muito obrigado.

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